Saga
Marcelo Rubens Paiva
Recebi muitos e-mails de leitores pedindo informações sobre a minha saga em busca do tempo perdido com o suporte da Microsoft. Comprei um computador novo, um Dimension E520, com o Windows Vista Home Basic. Tentei pagar as contas do começo do mês. Mas o certificado digital não estava válido, informou o banco, pois o sistema operacional não fora "homologado". A essa altura, eu descobria que periféricos ou seus drivers não eram reconhecidos pelo Windows Vista. Sem contar que não há corretor ortográfico em português no Windows Mail, o substituto do Outlook, cujo catálogo de endereços não dialoga com versões anteriores do Word.Passei a semana dedicado ao problema, pendurado ao telefone, esperando uma saída. Sem contar a ida a bancos, manipulando contas e papel-moeda, atividade que eu achava extinta pelo mesmo meteoro que caiu em Yucatán no México e acabou com o Cretáceo.
O suporte do fabricante do computador me sugeriu pedir à Microsoft uma licença de downgrade - como o nome sugere, o oposto do upgrade -, já que há no problemas de compatibilidade comigo. Como algumas mulheres já me disseram. Uma solução simples. Eu pediria para voltar para o Windows XP. Seria como sugerir ao Ronaldo Fenômeno que, se ele quisesse jogar, deveria voltar para o São Cristóvão, time carioca que o revelou.
Na terça-feira, o suporte da Microsoft me deixou uma hora e meia esperando. Imaginei que a saga seria semelhante às travessuras praticadas por Amyr Klink. Na quarta, me atendeu em minutos. Então, meu mundo começou a girar, como num surto de labirintite.
Sim, claro, a Microsoft me daria licença para um downgrade, e ainda perguntaram se eu queria CD ou faria tudo pela internet. Me passaram para os especialistas. Por instantes, achei a empresa generosa e sábia. Entendi o seu sucesso. Até me perguntarem qual Windows Vista tinha vindo com o computador novo. O Home Basic, informei. "Ah... Infelizmente, não fazemos downgrade do Home Basic, só do empresarial." Silêncio constrangedor. Perguntei se era justo, aquele cara ricaço, o Bill Gates, que ganha em dólar, cara de gente boa, fazer isso com um escritor dos trópicos. E qual a solução para os meus problemas. "Desinstalar o Vista e instalar o XP." Sim, eu tenho um XP do meu computador antigo. Posso instalá-lo no novo? "Não, ele só é liberado para o antigo." Mas vocês podem liberá-lo para o novo, é cópia oficial, comprada, registrada e juramentada? "Não podemos, não é o procedimento." Silêncio. Outro. A solução seria comprar um outro XP, me sugeriu o atendente, que me passou para o departamento de vendas. Valor? R$ 450. Perguntei o que o Bill Gates faria com o dinheirinho suado de um escritor do Terceiro Mundo, a feira?
Lembrei-me do personagem Morsa, do livro Mãos de Cavalo (Daniel Galera), que ensinou propositalmente ordens de comandos trocadas para dois dobermanns (ou seria dois dobermenn?) Aos gritos de "pega, pega!" e "morde!", os cachorros recuavam, enfiavam o rabo amputado entre as pernas e sumiam pela casa. Aos gritos de "senta!", "deita!", "parado!" ou "amigo!", eles atacavam o primeiro à frente.
Voltei para o maior fabricante de computadores do mundo, cujos atendentes falam com um simpático sotaque gaúcho. Contei o meu problema e disse que eu queria devolver o computador. "Devoluções só nos sete primeiros dias." Mas descobri os problemas depois. "Não podemos fazer nada." Então, pedi para trocarem o meu computador. E sugeri que a empresa me enviasse disquetes do Windows XP. Não podem, pois eles não trabalham mais com o XP. Então, perguntei onde eu errei, pois era evidente que a culpa era minha. "O senhor deveria ter se informado antes da compra das compatibilidades do Windows Vista", me disse em gauchês. Mas o que adiantaria, se vocês só trabalham com o Vista?
É. Eu deveria ter feito um genoma dos meus pais, antes de dar os primeiros passos. Eu deveria me certificar de que o mundo me entenderia, antes de nascer. Eu deveria ter certeza de que eu entenderia as mulheres, antes de começar a me apaixonar por algumas delas.
O que você faria? Encostar o computador novinho em folha e recuperar o velho?
No dia 7 de setembro, fui jurado com Marcelo Mirisola e Anselmo Bactéria de um concurso de poesia promovido pelo Espaço Parlapatões. Foram declamadas ao vivo no teatro, numa noite em que se abriu espaço para a camada mais desprestigiada (e no entanto mais próxima dos deuses) do caldo cultural contemporâneo. Revelou que a poesia está aqui, que há poetas de todos os gêneros e estilos em atividade: a dádiva não morreu. Ganhou Espantalho Descarado, de Marcelo Montenegro. A pontuação é minha. Por que votei nela? Por que será?
"Ando assim, tipo um erro flácido ambulante, sem êxito, hesitante, disco riscado fora do catálogo no pó do instante. Ando assim oco, uma crosta, vodu cansado, que com a sorte nem mais dialoga - diamante. Ando assim, mais opaco que olímpico, esquivo, íntimo, insípido, um mastodonte pensando desamparado, aspirando a paralelepípedo. Assim assim, meio Buster Keaton, um tanto de lágrima hasteando o riso. Ando assim, raso, indiferente, me divertindo um bocado. Eu ando mijando no poste, porque o banheiro está sempre lotado."
Na peça A Festa de Abigaiú, de Mike Leigh, em cartaz no Teatro Cultura Inglesa (direção Mauro Védia), casais vizinhos se encontram para bebericar e escutar Demis Roussos e Tom Jones, enquanto adolescentes dão uma festa punk na casa ao lado. O dilema é descobrir em qual casa a tensão é maior, naquela em que as neuroses são abafadas por uma opressora moral conservadora, cujos valores trabalho-casamento estabelecem princípios de felicidade, ou na que jovens extravasam dançando Sex Pistols e The Clash. Aliás, a arte de um grupo não é conseqüência do padrão do anterior (e para contestá-lo)?
Leigh cria um conflito baseado num realismo social extremo. Os diálogos rotineiros, formais, típicos de um encontro de pessoas comuns que mal se conhecem, são tão naturalistas, que se tornam surreais e cômicos. Rimos de quão banais somos. Como falar ao telefone com o suporte técnico de uma empresa.
Alguém se interessa por um Dimension E520 Core 2 Duo com Windows Vista Basic? É bonitinho. E pelo menos musiquinha toca.
Si alguien quiere hacer la traducción, envíela a:
enviolibros#gmail.com
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